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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

2010

XXXI Concurso Literário Municipal
Colégio Riachuelo
1º Lugar Crônica
Eduardo Librelotto Fernandes


Paradoxo

Estava a minha vizinha mendiga - como já fizera outras vezes - a preparar seu 'cafofo' ao lado da farmácia. A organização e o cuidado com que a mulher de trajes maltrapilhos dispunha seus objetos era algo fascinante por si só. Porém, depois de, aparentemente, concluir seus afazeres 'domésticos', alguma coisa curiosa aconteceu. A vizinha se encaminhou à 'mesa do almoço', improvisada no meio-fio. Sentou-se. Abriu uma sacolinha com alguns alimentos bagunçadamente amontoados e retirou seu bife salpicado de grãos de arroz. Abocanhou-o, nitidamente famélica. Entre seus dedos, escorriam os farelos despedaçados pelos dentes espaçadamente dispersos na boca quase banguela. Seus olhos fitavam o alimento e pareciam nada mais ver. Duas lentes fixas em um foco, como que com medo de que o alimento fugisse e a fome voltasse. Não percebia os passos velozes dos indivíduos que passavam, e estes tampouco a notavam diante da nuvem de detritos sociais que a encobriam.

Farejando os cantos da calçada, na esperança quase mórbida de não perecer, um cão esquelético aproximou-se, no instinto guiado pelo cheiro da carne. Estava perto demais. A mendiga notou. Uma troca de olhares marcou-se. Olhares de ambos os animais, um perante a sociedade, outro perante a natureza. Desconfiada, a mendiga olhou para o cachorro e voltou-se para os dedos, que seguravam firmemente um terço do bife. O baque ocorreu então. Sem titubear mais nem um instante, a mendiga abriu a mão e deixou o cão tomar-lhe o resto de seu almoço. Um sorriso sincero abriu-se naquele rosto maltratado. O sorriso de recompensa da solidariedade em essência.

Era extremamente paradoxal presenciar aquele fato. À medida que minha retina processava as imagens, os fragmentos iam se unindo em forma de reflexão. Era difícil acreditar. A mulher que costuma lutar diariamente pela sobrevivência, sob os olhos coniventes e egoístas dos transeuntes da cidade, mostrando que, mesmo imersa na miséria pungente, o estômago continuava menor que o coração. Um ato que poderia parecer impensado, ignorante... Contudo, era algo muito mais virtuoso, algo que a incompreensão de quem enxerga os fatos friamente é absolutamente incapaz de perceber. Um ato de nobreza; uma ação com alma impregnada, mesmo com a singeleza dos atos de uma mendiga. O paradoxo da riqueza dos fatos na pobreza da cidade.

Um comentário:

  1. Querido afilhado! Parabénsss!Tenho certeza que este é o primeiro, de muitas conquistas que vai ter pela tua vida. Beijosss de teus padrinhos

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